“É preciso ter um posicionamento proativo contra o racismo”, diz Priscilla Celeste, autora do livro “Do Outro Lado, do Lado de Cá”
Lançamento da publicação reuniu personalidades negras engajadas na luta antirracista em uma roda de conversa na Livraria da Vila, em São Paulo, quando destacaram que em uma sociedade estruturalmente racista, todos são responsáveis pela questão racial
No último sábado, dia 30 de abril, aconteceu no auditório da Livraria da Vila, em São Paulo, o lançamento do livro “Do Outro Lado, do Lado de Cá”, de Priscilla Celeste e Roni Munk. Na publicação, o casal conta a trajetória antirracista de sua família desde a chegada de Renan, um filho negro, que os despertou para um problema que no meio em que viviam era muito distante. Antes de receber convidados para autógrafos, os autores abriram uma roda de conversa sobre o tema com personalidades engajadas e protagonistas dessa luta.
O painel foi mediado por Priscilla Celeste, professora, tradutora e autora do livro “Do Outro Lado, do Lado de Cá”; e composto por William Reis, coordenador executivo do AfroReggae e empreendedor social; Débora Rosa, professora e mestra em Educação, Arte e História da Cultura e mediadora na educação formal e não-formal; e Wilson Marcondes, Diretor da Accenture, líder do programa Color Brave e coordenador do programa Black Connections, que reúne mais de trinta empresas. Os convidados compartilharam suas perspectivas sobre o papel de negros e não-negros na caminhada antirracista na educação, no ambiente corporativo e no empreendedorismo social, com a participação do público presente.
Motivações de um casal branco na jornada antirracista
“Eu não sou uma mulher negra, eu não tenho as marcas que o racismo estrutural imprime na vida e na existência de uma mulher negra. Contudo, eu sou mãe de um menino negro e tenho as mesmas aflições de qualquer mãe de um filho negro tem em um país em que um jovem preto morre a cada 23 minutos vítima da violência”, explica Priscilla na abertura do bate-papo.
“Logo que o Renan chegou nós começamos a perceber o racismo velado dentro do nosso próprio círculo de relações. Fomos convivendo com o racismo, aprendendo e nos percebendo, até que nos conscientizamos de que era imprescindível estudar essa questão”, acrescenta a autora. “Um menino que você cria na infância dizendo: ‘se manifeste, se expanda, ocupe seu lugar no espaço’, de repente, chega na adolescência e você tem que dizer a ele: ‘olha só, não corra, não reaja, não coloque a mão no bolso porque alguém pode interpretar de forma errada’”.
Indesejado pela cor da pele
Priscila Celeste e Roni Munk tem cinco filhos. O caçula é Renan, um jovem negro que, atualmente, tem dezesseis anos, “nasceu na família aos dois”, e foi com a sua chegada que essa família multirracial de classe média alta começou a vivenciar, “do lado de cá”, os impactos individuais e coletivos do racismo sobre “o outro lado”.
Em 2013, a família passou por um episódio que marcou sua trajetória antirracista: Renan, com apenas sete anos, foi expulso de forma violenta de uma concessionária BMW no Rio de Janeiro. Diante dos pais, o gerente da loja disse ao menino; “Saia da loja. Aqui não é lugar pra você!”.
Esta foi uma das primeiras denúncias de racismo noticiada pelos mais importantes meios de comunicação, que ganhou as manchetes no Brasil e no exterior. O episódio é apenas um exemplo do que acontece a toda hora, em todos os cantos do país, expresso pelos depoimentos de cada um dos entrevistados e fotografados para o livro.
Perceber-se é transformador
Priscilla fez questão de destacar uma frase da mestra em Filosofia Política e ativista Djamila Ribeiro, que diz “perceber-se é transformador”. Uma afirmação que se tornou unanimidade entre os convidados e se tornou um dos direcionais da conversa.
“É preciso reestudar a história do Brasil, essa escravidão mal resolvida, todas as consequências e impactos dessa história sob uma outra perspectiva. É preciso que a gente estude e leia autores negros que o nosso universo branco não conhece, porque a escola não mostra, a universidade não mostra. Só a partir daí podemos dizer que temos um posicionamento proativo contra o racismo”, destacou a anfitriã.
William Reis, lembrou os motivos pelos quais esse enfrentamento legítimo ainda encontra resistência na sociedade. “Muitas pessoas ainda não entendem que o racismo não é uma luta contra um RG, contra uma pessoa racista. É uma luta contra toda uma estrutura, uma história construída sobre uma base de desigualdade racial”.
“Essa não é uma conversa confortável”, começa provocando a educadora e ativista Débora Rosa. “Esse embate não acontece só entre classes sociais. Vejam o caso de Renan, uma criança negra parte de uma família branca bem estruturada e sofrendo do mesmo jeito os efeitos do racismo”.
Wilson Marcondes, lembra do susto de quando foi convidado a ser líder do programa Color Brave da Accenture no Brasil. “Nasci no Morro dos Macacos, no Rio de Janeiro, comecei trabalhar como menor aprendiz, uma janela de oportunidade que, se não existisse, talvez eu não estivesse aqui hoje conversando com vocês. Contudo, tirar esse projeto do papel foi o maior desafio de toda minha vida. Fiquei curioso sobre o motivo de ter sido escolhido e descobri que foi por uma razão muito simples, eu era o único negro em posição de alto executivo na Accenture do Brasil.
Entenda o caso que marcou a trajetória da família
Em janeiro de 2013, Renan, então com sete anos e o caçula de cinco irmãos, acompanhava seus pais Priscilla e Roni até a loja BMW Autocraft, uma concessionária da marca de carros de luxo que fica na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro.
Interessados em um dos veículos, conversavam com o gerente da loja enquanto seu filho os aguardava numa espécie de área de espera que são comuns em lojas do setor. Até que a criança resolve ir em direção aos pais e, de repente, é abordada pelo funcionário.
“Você não pode ficar aqui dentro. Aqui não é lugar pra você. Saia da loja”, diz o gerente e, ao perceber o desconforto, ainda se justifica se dirigindo ao casal que ficou paralisado e sem entender o que acontecia. “Esses meninos pedem dinheiro e incomodam os clientes”.
O casal se retirou da loja com seu filho, mas não ficaram calados, denunciaram o ato racista que foi um dos primeiros a ganhar repercussão da mídia dentro e fora do país, e também processaram a loja que, após dois anos, foi condenada por danos morais e a pagar uma indenização de 22 salários-mínimos (cerca de R$ 16 mil reais na época). O dinheiro foi doado pela família à Associação Nova Vida, instituição que apoia crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social.
No Comment! Be the first one.